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Fotos Ricardo V Barradas 39

Dr. Ricardo V. Barradas na curadoria da exposição de Oswaldo Goeldi na BMF

 

 

 

 

Em conjunto com a sobrinha-neta Lani Goeldi, participou como curador convidado da maior exposição sobre a obra do artista Oswaldo Goeldi já realizada em todos os tempos – GOELDI NA BM&F: ARTE EM BRANCO E PRETO – realizada na BM&F na cidade de São Paulo no ano de 2007.

 

 

 

 

 

 

 

Texto da Curadoria de Ricardo V. Barradas, mais de 30 anos é um pesquisador da obra e da vida de Oswaldo Goeldi

 

A vida não responde imediatamente as nossas complicadas expectativas. Por conta disso, certos eleitos, por ela mesma escolhidos de forma singular, seguem seus caminhos oblíquos e solitários, em uma continuidade criativa pulsante entre o torturante gemido solitário dentro dos abismos sombrios de nossa malfadada alma e a morna euforia escarnecida das palavras, não-ditas, mal ditas, em dúvida de si mesmo. Eu sou carioca de nascimento e, desde a infância, me sentia opaco, pela contemplação cotidiana das belezas naturais da cidade do Rio de Janeiro, a qualquer canto um novo olhar, de uma irretocável harmonia atlântica entre o céu, a mata e o mar. Aos treze anos, mudei-me com minha família, para a Amazônia. E por conta disso, chego bem próximo da compreensão exata do que tem ocorrido, com todo aquele nascido no Rio de Janeiro, e que seja remarcado a fogo pelo exuberante e incandescente sol equatorial, na grande mãe incontestável, senhora de todas as cores, sons e sabores florestais tropicais. Essa minha experiência pessoal deve ter sido bem parecida com a do grande mestre Goeldi que, quando na infância, se deslumbrou com as diversidades pungentes da Amazônia, pelas portas do Estado do Pará.

 

Oswaldo Goeldi é nosso verdadeiro expressionista e nosso verdadeiro modernista. O único artista modernista coerente em sua personalíssima produção autônoma e solitária, bem longe das regras poéticas modernistas centradas no conteúdo, e sem a menor preocupação com as tendências oficiais da arte brasileira, do modismo e do mercado de arte, como um todo.

 

Acredito que por conta desse comportamento, tenha sido mais fácil o primeiro reconhecimento de genialidade de sua valorosa obra, por diversos artistas literários de gêneros diversos.

 

Goeldi com sua arte estava muito além de seu tempo. E por conta de sua incontestável personalidade autônoma criativa, não foi bem recebido pela crítica especializada na arte, como também pelos outros artistas contemporâneos.

 

Mas a continuidade se faz necessária, mesmo quando temos externamente tão poucos estímulos incentivadores para isso. Parece que a estrada da personalidade forte reserva um caminho sombrio e solitário, para seus filhos mais queridos.

 

Sendo assim, a arte de Goeldi impressiona, desde o início, o menos letrado espectador, pela profundidade das questões sociais modernas que apresenta. Os elementos vivos de seus desenhos e gravuras estacam-se e vagueiam vagarosamente pelas superfícies negras e brancas, sem terem para onde ir. E os elementos mortos, imóveis e paisagísticos, assumem um papel metafísico, de lugar nenhum, becos, esquinas, vielas comuns, que podem ser de qualquer grande metrópole do mundo. Os elementos vivos e os elementos mortos trocam de papéis. A realidade sombria e cotidianamente opressora chega a assumir um papel inimaginavelmente mágico e importante. Da mesma forma que os elementos marginais de suas figuras. São eles bêbados, ambulantes, trabalhadores braçais, prostitutas, pescadores artesanais, que pouco a pouco assumem um papel definitivamente emblemático dentro de todos os processos criativos na obra do artista.

 

Acredita-se supostamente que o preto seja a inclusão de todas as cores, e que o branco seja a ausência e a exclusão de cada uma delas. Mas na arte de Goeldi, o preto e o branco assumem uma nova realidade em papéis distintos. O negro passa a ser o pano de fundo das palavras não-ditas, dos elementos mudos, dos muros descascados, da calçada escura, do canto imundo, que nos ensurdecem e o alvo passa ser o sopro da própria vida, a verdadeira luz, que anima todas as coisas que se movem, que nos entorpece no sentido inverso das falsidades.

 

Goeldi nos lembra em muitos momentos, em um convite constante, por sua obra, que as falsas modéstias, as vaidades, as arrogâncias burras e teimosas, o sermos importantes e privilegiados pouco nos valem verdadeiramente.

 

Pois a morte, futuro certo de cada um, iguala a todos a qualquer modo e não há quem, nascido algum dia, que dela escape.

 

Mas para Goeldi, a morte não é o fim somente, aparece como alicerce vivo e presente em todos os passos de nossas íntimas continuidades e conflitos diários.

 

Goeldi passou dos 6 aos 24 anos na Suíça. Viu de perto os horrores da guerra, das perdas, da fome, da solidão, elementos que marcaram definitivamente e profundamente a alma do artista. Nessa mesma época, na Europa, entra em contato com uma produção artística que o marcaria para sempre, a do artista austríaco Alfred Kubin (1877–1959), uma importância ímpar que, até hoje, nenhum trabalho crítico definiu a exata dimensão. É como se um fosse a contra face do outro, no encontro de um mesmo caminho.

 

Por esses encontros e achados, um na obra do outro, Goeldi e Kubin corresponderam-se constantemente de 1926 a 1951.

 

Acredito que existem certos e determinantes fatos, pessoas e personagens, que, vez por outra, redirecionam e norteiam ao mesmo tempo nossas caminhadas pessoais. Tanto como foi o encontro com Alfred Kubim, foi também com Hermann Kümmerly. Tiveram, cada um deles, uma importância norteadora dentro da emblemática carreira artística de Goeldi.

 

A vida se repete, em formas semelhantes, e em momentos desiguais, e reserva-nos surpresas dignificantes ao longo de nosso caminho. Assim também foi comigo neste encontro, quase que por acaso, com Lani Goeldi, sobrinha do artista.

 

A agulha imantada do encontro marcado, mais uma vez, cumpre seu papel enigmático.

 

Mas voltando ao grande mestre Goeldi.

 

No período que esteve na Europa, Goeldi limitou-se aos desenhos e à litogravura. Só em 1923, já no Brasil, é que passa a se interessar pela xilogravura.

 

A partir desse mágico momento de complexidade mútua, criador e criatura constroem um universo metafísico próprio da criação.

 

Evoco o termo latino creatore, sem a menor preocupação de blasfêmia literária contra a magna criação. Pois só para Oswaldo Goeldi, “entre os homens nascidos de mulher”, posso facultar esta comparação divina. Daquele que cria divinamente a partir do nada, e não tão-somente transforma. Ao contrário de muitos, que não fizeram nada mais do que uma releitura do que já existia, Goeldi veio com um universo totalmente novo, magistralmente criado, e perpetuado ao longo de sua vasta obra. A gênesis na verdadeira arte se repete: como o homem veio do barro, o mundo mágico de Goeldi veio a partir do comum pedaço de madeira.

 

E por meio da mais popular das técnicas de expressão artística, a xilogravura, tão presente nos livretos da literatura de cordel, expostos entre os anônimos ambulantes, nas incontáveis feiras livres de todos os nossos “brasis”, vem a expressão máxima de sua arte.

 

Perpetuando-se mais uma vez que o feito magistral, não necessita do mais precioso para ser executado.

 

O grande mestre faz a xilografia assumir um caráter essencialmente expressionista, moderno e erudito.

 

Goeldi, em goivagens precisas na confecção da matriz, inicia a ressurreição de luz e força, arranca a cada movimento, do tosco pedaço de madeira, a própria vida. Em uma engenhosidade complicadíssima de colorir com várias cores a gravura no suporte orgânico, revela ao espectador um mundo mágico, totalmente vivo, com uma matriz personalíssima de criador.

 

Consegue Goeldi, no desenho a lápis, no carvão e no nanquim, a mesma expressividade encontrada nas gravuras magistrais. Como um verdadeiro maestro, não privilegia qualquer instrumento: rege qualquer um deles, com o único objetivo de chegar bem próximo da perfeição. Assim, nas mais diferentes técnicas de expressão artística, consegue redimensionar a importância do branco e do preto, do claro e do escuro, da vida e da morte, do comum e do eleito, convidar o espectador solitário, um a um, olho a olho, perante qualquer uma de suas obras, encontrar parte das respostas contidas em todos sombrios abismos pessoais de cada um, e por conta deste feito, sempre ser celebrado.

 

E as gerações que hão de vir verão, verdadeiramente, Oswaldo Goeldi como o maior artista moderno brasileiro.